domingo, 29 de novembro de 2009

Manteiga derretida - 18



Aliás[1], temos que convir que relógio de UTI tem seu lado bom. Tempo era o que não me faltava.
Nem interlocutor.

Como as visitas eram proibidas e eu ficava sozinho o dia quase todo (e a noite também), eu buscava quem eu quisesse e batia longos papos.

O povo da enfermagem ali, meio cabreiro, achando que eu estava delirando.
Que nada. Eu estava virando um contador de história. Estava repassando minha vida toda para o Valente, que eu ainda nem sabia que existia.

Lembrava de mamãe me esperando acordar no Delfim Moreira. Do tempo e do jeito que eu voava. Do dia que eu caguei nas calças e passei na frente da minha paixão, todo fedorento, em Vila Velha. Lembrava de eu e Cuca no Pandiá, do tanto que Dona Olga era doce e a Lilu era linda. Do dia que eu ganhei a bola de futebol de salão como melhor aluno de matemática do Duque de Caxias. Da minha ida pro Loyola (pegando carona na Rural com Dona Hayde) porque queria ser padre e tomei bomba em religião. Lembrava da minha ida pro Estadual, onde era percussão e backing vocal d’Os Impossíveis com Marcelinho. Da Teresa e da Ligia, da Betinha e da Tânia, do Augusto me ajudando a dar o maior agá no seu Pedro pra poder beijar eu a Lu e ele a Beth, as duas irmãs da Luiza, o meu anjo da guarda que primeiro identificou a p!+{Ü do tumor...

Lembrava de eu chegando pra Almir e perguntando qual era o telefone do Arroz Paranaíba, cliente da Meta. E ele respondendo, sem tirar o olho do que estava fazendo:
- Procura no catálogo, na letra A, de Arroz Paranaíba.
Almir era assim. A gente era colega de escola e ele assumiu, do nada, a tarefa de me transformar de menino mimado em profissional e me fez desenvolver iniciativa e visão de projeto. Dava autonomia pra gente a semana toda e sábado tinha a “Sessão de Esporro”. Era como Vítor e eu chamávamos as reuniões de feedback, onde Almir se fazia de Mentor a nós, seus Telêmacos, apontando o que tínhamos feito certo e corrigindo o que tínhamos errado.
Eu lembrava disto e chorava.

Lembrava de Herval, diante do meu pedido de demissão da Vale porque eu não estava gostando do trabalho que estava sendo feito em Vitória, todo cuidados, me perguntando:
- Te interessa saber minha opinião?
O engraçado é que eu nem lembro do que a gente conversou depois. Mas esta pergunta ficou para sempre gravada em mim como marco do respeito do limite na relação entre duas pessoas.

Lembrava da ousadia do Emerson, visionário, me falando:
- Estou indo pra Brasília amanhã, fechar um acordo com o governo da França. Não sei pra onde, não sei pra que, não sei pra ganhar quanto. Mas se fechar é você. Quer?
Aceitei na hora.
Falei com a Gêisa, com a mesma (im)precisão que ele tinha me falado.
Ela aceitou na hora.
Eu lembrava disto e chorava.

Lembrava de eu, ouvindo do Sílvio:
- Não preocupa que eu não deixo ninguém encostar a mão em você. Mas eu não quero que você vá pra casa sem experimentar tudo.
E completava, com um sorriso irônico:
- Mas acerta de vez em quando, ...
Eu lembrava disto e chorava.

Lembrava de Camilo me dando boas-vindas e definindo, na lata, como ele adorava fazer:
- Gordinho, nós só vamos brigar se você errar duas vezes do mesmo jeito.
Eu lembrava disto e chorava.

E lembrava de Gêisa e dos meninos, da mamãe e dos meus irmãos, todo mundo se fazendo de forte, chorando escondido, pra não me deixar esmorecer.

Lembro de tudo isto até hoje, e choro, emocionado com o apoio que todo mundo me dá.




[1] Herval, designado pelo Alberico pra ser nosso mentor na Vale, dizia que o grande desafio da vida dele era começar um texto por Aliás. Lembrei dele hoje, enquanto escrevia e chorei, de pura saudade...

sábado, 28 de novembro de 2009

A regra do jogo - 17



Eu já tinha percebido que minha sensibilidade estava à flor da pele. O choro vinha fácil e convulsivo.
Gêisa e os meninos ficavam apavorados, quando me viam me debulhando em lágrimas, achando que era depressão das brabas.

Pra mim, não tinha o menor problema. Sabia que não tinha uma gota de desespero no meu choro. Era tudo choro bom.

Mas eu já tinha percebido como a coisa funcionava. Da mesma forma que eu, quando morava na França, comecei a identificar procedência das pessoas (cara de português, cara de espanhol, cara de escocês), comecei a ficar craque em perceber quem me fazia bem, quem me trazia boas lembranças. Eu comecei a perceber quem me dava força e, mais importante, como estabelecer a relação de forma que a pessoa me gerasse bem estar. No princípio fiquei com medo disto ser uma reação meio egoísta. Mas no final, percebia que isto acabava fazendo bem à pessoa com quem eu estava me relacionando também.

Foi ótimo. Aprender isto fez minha relação com a equipe de enfermagem (os técnicos [1] e enfermeiros) ficar muito mais doce e suave. O jeito que eu recebia eles determinava o padrão da relação. Aí, eu dei a maior sorte. Só caía gente boa na minha mão. Teve só um dia que deu errado. Mas é história lá pra frente ...

Mais tarde, vi esta tática descrita, cientificamente. Está no livro “A cientista que curou seu próprio cérebro”[2], da Dra. Jill Bolte Taylor. A autora é pósdoutora em neuroanatomia e dava seus cursos em Harvard. E não é que, ironia, a menina teve um derrame...? É curioso ver ela contando da coisa com o rigor de uma cientista do ramo e depois como ela reagiu a isto.

No livro ela fala que havia aprendido a identificar gente que supria e gente que drenava a energia dela. E como ela ia se aproximando mais de uns e se afastando dos outros. Acho que era mais ou menos isto que eu fazia, meio que institivamente.

Ao mesmo tempo, ia lembrando de gente que, ao longo da minha vida foi me ajudando a crescer. Aí, era aquela rotina. Eu lembrava e chorava, lembrava e chorava ...

Só não dava certo com o Xande. Com a cara mais lavada do mundo, ele me manteve, inflexível, os oito dias previstos na UTI me garantindo, todos os dias, que amanhã, no máximo depois, ele ia me tirar dalí e me mandar pro quarto.



[1] Apesar de eu já ter aprendido isto no meu período de Santa Casa, Cláudia do Wagner, minha paixão de faculdade (o Wagner não, a Cláudia), que é enfermeira, fez questão de que isto fosse explicitado.
[2] Quem me deu o livro foi Ju, doutora bambambam em biologia na USP e filha do Sineval, meu irmão de São Paulo. Que, além de fazer um trabalho belíssimo em Liderança e Criatividade, é da Velha Guarda da Escola de Samba Águia de Ouro (a Ju não, o Sineval).

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Festa no apê - 16

Xande apareceu na minha vida quando eu comecei a namorar a Gêisa.
Eu já era bem mais velho. Devia ter uns 19 pra 20 anos. Ele ainda devia contar idade com um dígito, eu acho.
De lá pra cá, sempre que a gente se encontra é motivo de festa.

Sabendo que lá em casa qualquer coisa virava celebração[1] e que isto não seria nada bom pra minha recuperação, Xande agiu rápido. Deixou um aviso seco, ríspido e direto na portaria do hospital:
“Proibido visitas”.
Ponto final.

Adiantou pouco.

Primeiro que na família tem médico a dar com pau. E esta ameaça não vale pra médicos em ambiente hospitalar.
A começar pelo Xande, o autor da restrição. Era só ele aparecer e, do nada, nós dois começávamos a rir.
Gilson, irmão da Gêisa, vinha e dava notícia. Edvaldo da Gina me obrigou a pedir desculpas por eu já ter sido apaixonado com a mulher dele na adolescência.
Dr. Sensei, meu angiologista, apareceu algumas vezes. Na melhor tradição nipônica, não abria a boca. Apenas meneava, respeitosamente, a cabeça e, com as mãos, me dava indicação pra fazer exercício com as pernas. Um novo menear de cabeça e saía. E me deixava, niponicamente também, rindo feliz. [2]
Os residentes morriam de medo de mim. Maila, irmã da minha filha Lisa, era professora deles na Federal. João Gabriel, meu lord predileto e tutor na minha atribulada relação com meu excesso de peso, também. Os dois, habitués no meu chatêau.
Com seu refinadérrimo senso de humor, João resumiu assim minha boa recuperação:
- Se você me permite a licença poética, eu fico muito satisfeito de vê-lo nestas condições.
E me deixava encantado com seu discreto sorriso.
Maila, professora delesChegou a ponto de um residente um dia despedir de mim falando assim:
- Sábado é minha folga mas eu acho que eu venho pra cá. Aqui fica mais animado do que qualquer balada que eu possa ir...

O que, pensando melhor, me fez muito bem. Diz a lenda que quando você passa por anestesia, fica chorão com força. Aí, foi só confirmar a lenda com os médicos, que deviam estar acostumados com esta coisa.
Era só chegar um desavisado e eu destampava a chorar.
Em tempo: um dia chega um médico que eu nunca tinha visto mais gordo (nem mais magro) e falou assim:
- Eu sou o Dr. Sérgio Negri, filho da Socorro Coelho e minha mãe mandou um abraço.
Elegante, agradeci, sem ter a menor idéia de quem pudesse ser Socorro Coelho.
Quando perguntei pra mamãe, ela esclareceu, liguei pro Sérgio e passei-lhe o maior sabão.
Sérgio era filho da Socorrinho do Tio Omar.
Acho que nem eu nem ninguém já tinha se referido à Socorrinho como Socorro Coelho...

[1] A gente volta a falar disto mais na frente...
[2] Ricardo, filho dele, cardio, ia muito com a Bibi. A gente rachava de rir da minha imitação da elegante postura do pai dele.







domingo, 22 de novembro de 2009

Slow Motion - 15


Não conheço nenhum estudo científico a respeito.

Mas acho que o fenômeno deve se repetir nas UTI’s do mundo inteiro.
Relógio de UTI anda mais devagar que os outros.

Ponto final.

Você olha, 03:15. Aí, vai ler um livro, reza, faz exercícios com os pés,...
Olha de novo umas duas horas e meia depois, e o relógio, inflexível, 03:17.
Enfermeiro vem, mede sua pressão, tira sangue pra exame, arruma sua cama,... Você olha e tá lá: 03:18.

Vou sugerir para o povo da Fórmula 1 pra instalar uma UTI nos boxes durante as corridas. Aposto que o tempo médio dos pit stops vai passar a ser de 0s72”, de 0s97”. E com mecânico fazendo bobagem até não poder mais.

O relógio da UTI contradiz até a música do Cazuza.


Lá, o tempo pára.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Seu Benício - 14


A UTI devia ser uma das bitelas.
Eram uns 20 boxes, mais ou menos. Box mesmo. Igual os de oficina mecânica. Uns 10 de cada lado com o corredorzão no meio.

No começo eu fiquei meio chocado. A gente não tinha um mínimo de privacidade, pensava eu, recém chegado e já querendo cagar regra. Que, diga-se de passagem, durante quase duas semanas, a única coisa que eu conseguiria cagar era regra. Mas disto, a gente fala depois.

Aí, com pouco tempo de casa, percebi que era aquela organização que garantia que a equipe de enfermagem oferecesse o melhor atendimento pra nós doentes que estávamos ali. O tempo todo a equipe de enfermagem mantinha o controle da situação. Uma olhada rápida e era fácil pra eles identificar qualquer não conformidade e intervir rápida e eficientemente.
O ruim era só que eu, com esta minha fantasia permanente de onipotência, detestava a idéia de ser vigiado o tempo todo. E o pessoal, atento, se eu mudasse o ritmo da respiração, aparecia pra checar se estava tudo bem.

Eu teria que passar 8 dias sob observação. Xande, meu urologista, já tinha me prevenido isto. Não era sinal de nenhuma gravidade. A observação era parte do procedimento.
Ponto final.
Ocorre que neste ambiente eu era o filé. O dodói da equipe. Chegava neguinho estourado de acidente, entre a vida e a morte, paciente terminal na pior, brigando por um fio de esperança, uns sobressaltos na equipe de vez em quando, ... E eu, comparado com eles, esbanjando saúde. Era ou não era um filézinho?

Logo que eu voltei da operação, fiquei com a emoção à flor da pele. Qualquer coisa me fazia chorar feito menino. Ia conversar com a Ciça, desabava a chorar. Gêisa chegava, e eu abria a mangueira. Virei a maior manteiga derretida.

E aí, justo na minha frente, ficava o seu Benício. Seu Benício era um trabalhador rural, que brigava com um câncer há mais de seis meses. Entrava, saía, ia pra casa, voltava, ... Ficava neste rame rame.
O filho dele, rosto queimado do sol do campo, vinha e ficava triste, amuado, sentado em um canto do lado da cama dele.
Todo dia.

Seu Benício já tinha a voz comprometida com uma traqueotomia que tiveram que fazer nele, por causa do câncer. Queria beber água e não podia. Pra piorar, a voz não saia. Agitado, ele batia na ferragem da cama, obrigando o pessoal a dedicar a atenção que ele não conseguia pela falta da voz.

A noite toda seu Benício batia na grade da cama. Eu acompanhava aquilo com o maior respeito. Pra mim era um jeito de Seu Benício mostrar que não entregava os pontos. E eu chorava baixinho, lembrando que Seu Benício era meu Richarlysson. O drama dele fazia o meu parecer brincadeira.

E ficava triste, solidário, imaginando se haveria, meu Deus, alguém que fosse um Richarlysson[1] para o Seu Benício?



[1] Vai lá na história 06 se você estiver se perguntando quem, ó raios, é este tal de Richarlysson.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Brave Heart - 13





Não é que eu seja exatamente um modelo de coragem. Que Valente não nos ouça, mas eu diria até que estou bem longe, quilometricamente longe, disto.
Tem duas coisas que eu particularmente me pélo de medo: agulha e hospital. Prefiro mil vezes atravessar uma rua escura à meia noite do que fazer exame de sangue ou me internar em hospital. E os próximos dias prometiam ser pródigos nestas oportunidades.
Foi aí que, brincando com Tomás, eu enxerguei a solução.
O caminho era simples e Tomás o executava com maestria. Toda vez que a gente estava brincando e eu acuava Tomás em um canto, ele cobria seu rosto com um paninho ou fechava os olhos. Pronto.
Ficava invisível.
Ou desaparecia, sei lá. Mas não falhava nunca. Tanto que quando eu o pegava, não valia. Tomás não estava ali...
Eureka!
Era só levar a tecnologia comigo.
O resultado é que eu não conheci nenhuma das salas de cirurgias por onde passei. Toda vez que eu ia entrar, fechava os olhos ainda no corredor e lá ia eu, com Tomás ao meu lado, me acalmando. O legal é que não falhava uma. Tira rim, põe cateter, põe fístula, tira sangue... Chegava agulha perto de mim, era só fechar o olho e o problema estava resolvido.
Tomás, te devo mais esta!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Diz a lenda - 12


Aí eu não tenho idéia de mais nada.
Mas diz a lenda que eu fiquei umas 8 horas na mesa de operação. Estou pensando aqui, eu e minhas dobrinhas de pneu Michelin, que, da mesma forma que eles não falam a palavra câncer, eu nunca falei com eles sobre como foi esperar notícias vindas do centro cirúrgico.
Mas diz a lenda que o primeiro passo foi retirar o trombo da veia cava. Era ele o Ó do borogodó. Sem esta retirada, não adiantaria muito extirpar o rim com o tumor. Xande havia feito um corte na minha barriga parecendo um sino. Era uma boca do Coringa do Batman, só que de cabeça pra baixo.
Aí, Geléia, o cardio, assumiu o controle e, que nem um roto-rooter, fez a minha veia cava ficar que nem a Linha Verde no dia da inauguração. O sangue fluía, livre, leve e solto.
Limpo o meio de campo, Geléia passa a bola para o Xande. Tudo sob o olhar cuidadoso do Dimas[1].
Acho que já tinha falado isto, mas reavivo sua memória. É que pra valer a pena tirar o rim, o trombo precisava de não mais obstruir a veia cava. Deu certo a primeira parte, aí partiu pra segunda.
Finalmente, os pontos.
Você não faz idéia do serviço bonito que o Xande fez. Diz a lenda que os pontos todos foram internos e a cicatriz mais parece uma tatuagem. Ficou tão bonito que outro dia um amigo meu que não sabia desta história toda, estranhou me ver tão magro. Comecei a inventar que tinha feito cirurgia bariátrica. E ele gostando da minha leréia, e eu gostando do que eu ia inventando, aos borbotões. No final, logo antes de eu desmentir, ele já queria indicar meu médico pra uma amiga dele, supervaidosa, que não faz a cirurgia por medo da cicatriz. Sem quelóide nenhum.
Aí, me mandaram para a UTI, pra 8 dias de observação.

Tava muito bom pra terminar aqui.

Diz a lenda que Ciça, minha filha mais nova, foi a primeira a aparecer pra me visitar. E foi brindada, coitada, com um acesso de tosse (algum reflexo da operação) que quase fez a menina desmaiar, de susto.
Diz a lenda que, enquanto virava os olhinhos, só deu tempo dela gritar pra enfermeira:
- Moça, acode aqui que meu pai está passando mal...

[1] Engraçado que só hoje, escrevendo isto, me vem na cabeça a música do Chico que fala “ó metade arrancada de mim”. Deu uma saudade do meu rim esquerdo agora, ...

domingo, 15 de novembro de 2009

Dia D - 11


Dia primeiro de setembro, 05:30 da madrugada. Toca o despertador e corro pro chuveiro. Eu tinha que estar no Hospital Luxemburgo dali a uma hora.

Não fazia idéia que aquele ia ser o último banho decente que eu ia tomar nos próximos 3 meses.
Soubesse eu da dor de cabeça que o cateter me geraria pra entrar no chuveiro, acho que até toparia acordar meia hora ainda mais cedo, só pra deixar a água ficar gostosamente me acariciando, cálida.

Mas aí, começou a trava. Ao contrário do que acontece toda manhã, minha visita ao banheiro foi, se é que você me entende, infrutífera. Nada!!!
Paciência. Depois eu completo o serviço...

Lisa tinha dormido conosco, solidária. Diogo, para garantir que Tomás seguisse sua rotina diária na escola, acompanhava, agoniado, de longe. Pela primeira vez na vida, todo mundo estava na mesa do café às 06:00 da manhã. Saímos de casa, todo mundo com um sorriso amarelo, a tempo de chegar na hora no hospital. O trânsito fluindo rápido, já que ninguém se levantava àquela hora da manhã.

Chegando lá, a única coisa capaz de me fazer rir feliz, naquela hora.
Du, meu amigo claustrofóbico da história de agosto, me esperava na porta. Tinha acordado ainda mais cedo que eu, só pra me dar apoio na minha entrada no hospital. Ficamos lá, rindo da nossa angústia, rezando, cada um à sua maneira pra dar tudo certo, enquanto não chegava a hora de eu ser encaminhado ao bloco cirúrgico.

Pra completar, aquele serviço incompleto, citado há uns três parágrafos aí pra cima, começou a dar sinais, piscando, de que tinha resolvido aparecer. Aí, corri até o banheiro do hospital e a coisa rolou. Saí de lá com a cara mais de inocente que eu consegui, vestindo já a roupa pra entrar na sala de cirurgia, deixando para trás um pedaço de mim.
Despedi de todo mundo, consegui controlar maldisfarçadamente o choro e deitei na maca, para que Igor, um negão simpaticíssimo de quase dois metros de altura, me encaminhasse até a sala de cirurgia, onde encontrei com meu primo Xande, o urologista que comandaria a intervenção. Xande, delicado, me avivou a memória, me livrando de uma pequena saia justa. Percebendo que eu olhava pro anestesista com cara de te conheço de algum lugar, Xande, um diplomata, brincou comigo, chamando a atenção para seu companheiro de equipe. Xande falou:
- Olha o Dimas aí, Paulinho.
Aí a cara de Dimas me voltou a ser familiar. Era o médico que fez a consulta pré-operatória comigo e com Gêisa e havia se colocado à disposição pra qualquer dúvida que a gente tivesse. Qualquer, havia ele ressaltado. E conduziu a coisa com tanta leveza que eu tive a oportunidade de tirar todas as dúvidas que eu tinha sobre o que me esperava.

Foi a última coisa que eu me lembro. Meus olhos se fecharam e, pelas notícias que me deram, devo ter ficado umas oito a nove horas entregue aos cuidados daquela equipe.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Veja bem, ... - 10



Tudo bem que eu não sou dos mais espertos. Mas foi curioso como, neste processo todo, ninguém fala a palavra câncer comigo hora nenhuma. Quis muito que, desde a primeira hora, todo mundo soubesse de tudo. Falei logo com Gêisa e os meninos, com meus irmãos e meus cunhados, escancarei logo tudo com mamãe. Soldado, meu irmão, me perguntou até onde mamãe sabia.
Tudo, eu falei.
Mas parece que há meio que um código quando as pessoas conversam com quem está com câncer, que faz o fardo ficar mais difícil de ser carregado.

Todo mundo só fala em tumor, com medo da vibe da palavra. Ocorre que, pra mim, sempre que eu tinha tumor nas minhas férias em Valadares, era aquele tufo branco que aparecia por causa das ínguas, e que quando estourava saía pus.
Era batata.
Só passar basilicão e pimba. A gente drenava o furúnculo até a saída do carnegão. Depois, era passar arnica e tudo ficava bacana[1].

Será que era isto que o Xande ia fazer no meu rim?

Então, pra que a consulta com o oncologista, que todo mundo falava pra eu ter, depois da operação, se já teria limpado o tumor?


Acho que foi por isto que eu me apaixonei com o livro do neuropsiquiatra francês David Servan-Schraiber, que saiu pela Fontanar. O livro chama Anticâncer. Ganhei dois, de dois amores da minha vida, Adriana e Cecília. Ele começa o livro já desnudando o estigma. Logo no primeiro parágrafo, na Introdução, ele chuta o balde e diz, assim, de cara:

“ Todos temos um câncer dormindo em nós. Como todo organismo vivo, nosso corpo fabrica células defeituosas permanentemente. É assim que começam os tumores. Mas nosso corpo é também equipado com múltiplos mecanismos que lhe permitem detectá-los e contê-los. No Ocidente, uma pessoa em cada quatro vai morrer de câncer, mas três em cada quatro não morrerão. Para estas últimas, os mecanismos de defesa terão derrotado o câncer.”

Fala se a conversa assim não é mais legal que o cerca-lourenço...?

Vou dar é um jeito de facilitar a vida dos meus mecanismos de defesa pra eu ficar naqueles ¾ bacana.



[1] É engraçado, mas eu só me lembro de eu com íngua nas férias e na casa da vovó. Jeito ruim de anuviar o prazer das férias...


Cachorro doido - 09


Agosto, como de hábito, mereceu o folclore que lhe é atribuído de ser o mês do cachorro doido. Nunca entendi direito o que significa isto, mas me pelava de medo, quando ouvia.
Agosto, pra mim, foi um exame em cima do outro. E o tempo todo, brigando com o tempo.
Xande precisava concluir o diagnóstico e, ao mesmo tempo, as coisas precisavam ficar prontas para o dia 08 de setembro, dia que o centro cirúrgico tinha sido reservado pra mim.
Aí começou. Fiz Ressonância Magnética do Abdome, Tomografia Computadorizada do Abdome e Pelve, Tomografia Computadorizada do Tórax e EcoDoppler Cardiograma.
Parecia agenda de executivo importante. Tudo cheio...
No final, Xande me pediu uma Cintilografia dos ossos pra ver se o câncer teria eventualmente se espalhado pelo corpo afora.
E aí, finalmente, uma notícia boa: o tal trombo da veia cava, que eu contei pra você no capítulo 05, funcionou como um obstáculo pras células cancerosas se espalharem. (Caso você tenha perdido esta parte, desce lá e relembre o que é trombo. Menos o Xande, que vai ficar chocado com minha tradução vulgar do caso clínico dele).
E isto, no frigir dos ovos, me ajudou pra danar. O resultado da Cintilografia acabou deixando o Xande animado. Na carona, eu mais ainda.
Fechamos agosto com chave de ouro. Consegui marcar as consultas com a nefrologista, com o anestesista e Tuné, cardio, conseguiu entregar o Risco Cirúrgico a tempo do Xande aproveitar uma oportunidade na agenda do Centro Cirúrgico e antecipar a operação para o dia 01 de setembro.

Nesta história toda, só morri de dó do Du, meu irmão há mais de 40 anos e que é claustrófobo praticante. Eu contava pra ele como era entrar na máquina de ressonância e ele começava a suar frio. Um horror só.
Pra ele.
Pra mim era mais tranqüilo. Eu conseguia até rir do meu medo de não caber naquela circunferência excludente da máquina.

Vou falar com o Guga, atleticano e engenheiro da Siemens na Alemanha, que eles deviam pensar mais nos gordos, quando fazem suas máquinas de ressonância. Não tivesse eu perdido meus quilinhos, estava entalado lá até agora...

domingo, 8 de novembro de 2009

O patrono - 08

Marcelo é meu irmão desde a época em que a gente foi colega de faculdade. Fiz questão de contar, eu mesmo, pra ele. É o tal que me desligou o telefone na cara, em alguma história aí pra trás.
Dois dias depois Marcelo me liga e me dá uma aula:
- Tem umas entregas que não tem como a gente recusar. Não adianta dizer que não mora mais aqui, que quer só uma parte, que aquilo não é pra você, que é pra outro, que é pra deixar só metade...
Nada de pelo menos uma parte. É o pacotinho inteiro. Tem que aceitar tudo, e viver feliz com ele.

Mas esta história do pacotinho me faz muito pensar em São José e faz dele quem cuida de mim e do Valente. Imagina o Anjo do Senhor chegando e falando assim:
- Senta aí, José. Deixa eu te falar um negócio. Sua mulher está grávida, o pai não é você, vocês vão ter que fugir de casa pra proteger este menino deixando tudo pra trás, você vai ter dificuldade pra arrumar hospedagem, vai ter que dormir em manjedoura, vão tentar matar este menino e com isto vão matar vários judeuzinhos da idade dele, você vai ter que fugir de novo, você vai encontrar este menino dando de sabe tudo com os doutores do templo, ele vai malhar vinho em festa de casamento, o menino vai morrer cedo, crucificado,... ele vai te dar um trabalhão que você não faz idéia e ninguém nunca viu nada igual. Você vai ter que dar suporte pro menino e pra mãe dele o resto da vida e seu papel nesta história vai demorar a ser reconhecido, conclui o emissário, temeroso da resposta.
Sereno, São José responde:
- Tou dentro!

Penso sempre nisto, quando olho e vejo Gêisa, meus meninos, minha família e tudo que a gente já passou junto.
Fala se não é bacana?

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Minha turma - 07


Teve uma época, logo no comecinho, que eu fiquei com aversão a lugar comum.
Neguinho vinha me falar que estava torcendo para que tudo desse certo, já ficava eu emburrado, com a tromba de fazer inveja em elefante (por falar em lugar comum...). Pra mim era evidente, uma vez que isto era default pra quem gostasse de mim.
Minhas filhas eram extremamente rigorosas com esta reação minha que elas chamavam de estranha. Elas brincavam dizendo que eu ia terminar rodeado apenas do pessoal da Pastoral da Saúde. E que meus amigos, cansados da minha chatura, iam acabar me deixando de lado.
Depois, avaliando melhor, cheguei a uma estarrecedora conclusão. Meus amigos, meus mais chegados, eram todos esquisitos mesmo. E eu ficava felicíssimo com eles.
Marcelo, quando contei pra ele, desligou o telefone na minha cara.
Lisa não acreditou.
- Na cara, pai? Deixou você lá, ouvindo: tu, tu, tu,...?
É. Na cara. Por ter ficado assustado com a notícia.
Dois dias depois ele me liga e me dá uma lição. Mas isto é assunto de outra história.
Gordo despencou de Brasília aqui só pra ficar a tarde inteira rindo comigo. Voltou de noite. Acho que só eu falava. Mas ele sempre foi calado assim comigo. Mas a gente riu igual menino...
Boni, quando eu contei pra ele, falou assumindo seu jeito lacônico de fingir que não se emociona por nada:
- Quando tiver tudo resolvido, me liga de novo.
Celinho, pedi que ele viesse aqui, pra falar com ele ao vivo. Entrei no carro e saímos para dar uma volta no quarteirão. Contei:
- Tou com um tumor no rim e vou tirar fora.
Ele chegou na porta de casa, parou e saiu de novo pra uma segunda volta, com os olhos cheios dágua, sem abrir a boca. E a partir daquele dia, Celinho me ligava todo dia. Pra nada. Só pra mandar um beijo.
Lac me manda um vasinho de flor e, junto do cartão, o papelzinho da doação de sangue.
Mário plantou uma crônica no jornal.
Cada um mais esquisito que o outro, mas me mostrando, do nosso jeito esquisito, o quanto a gente gostava um do outro.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Pensa no Richarlyson - 06


Lisa, minha filha do meio, nasceu pra trabalhar com web. Pensa web, respira web, planeja web, tudo dela é web. Manja do assunto pra danar. [1]
E eu lá, com a cabeça fervendo, a mil, esperando a marcação da data da operação, sem saber direito o que me esperava, recebo um email dela, que dizia assim:
- Pai, está triste? Pensa no Richarlyson.
Junto, me mandou o link de um blog de um menino de 13 anos, filho de jornalistas esportivos, e que era louco com futebol, cujo link vai aqui, pra quem também for fanático pelo assunto.(http://colunistas.ig.com.br/mauriciostycer/2009/08/16/um-menino-de-13-anos-da-uma-aula-sobre-richarlyson/) .
A bem da verdade, fiquei com um pouquinho de preguiça do menino, meio bem articulado demais pra quem tem só 13 anos. Deu a impressão que era daqueles meninos chatos, oniscientes, que já sabia o caminho das pedras desde sempre. Achei que ele faria melhor se fosse jogar bola, em vez de estar atualizado até o osso sobre a questão.
Mas como o assunto do link era preconceito, deixei o meu de lado pra compartilhar a história com você.
Lá vai:
“...
Ontem eu estava reclamando com meu pai da escola, dizendo que ela enchia o meu saco, que me sentia deprimindo com a “má fase” dos últimos tempos. Na lata, antes de desligar o telefone, ele me respondeu: “Tá triste? Pensa no Richarlyson.” Em um ato incomum nos últimos tempos, obedeci-o. E senti dificuldades em dormir. Porque fiquei pensando. E por bastante tempo. Confesso que caiu uma lágrima quando eu me lembrei do jogo entre São Paulo x Goiás, no ano passado, quando na comemoração pelo título, ao invés de gritarem o nome de Ricky (como gritaram o de seus 23 companheiros), entoaram um imbecil “Bicha! Bicha!”
Imagino como deve ser para ele ver a torcida Independente (depois falo dessas antas) gritando o nome do Sérgio Motta (com todo o respeito) e não o dele. Um cara que deu a vida pelo São Paulo em 2006, 2007 e 2008. Que para mim, mais que Thiago Neves e que Hernanes, foi o melhor jogador do Brasileiro em 2007.
O cara é xingado no Domingo, e treina na Segunda. Dando o máximo de si. É o mais simpático possível com os companheiros. Não deixou de me cumprimentar em todas as vezes em que visitei o CCT do São Paulo. Antes de eu ir lhe pedir autógrafo. Mais gente fina impossível. Humilde.
Eu não sei se Richarlyson é homossexual. Também não quero saber. Mas sei que ele é um exemplo. Um exemplo para todos que se sentirem mau em momentos difíceis. Pense em como é viver um momento difícil, tendo todos contra você durante mais de três anos seguidos. Sei que, desde os tempos do Aloísio, não vejo um cara tão gente boa no elenco do São Paulo. E olha que tem muita gente boa ali.
Não sei se os atos que ele faz são homossexuais. Não quero saber, afinal saber para que? Se eu descobrir que ele é um homo que pega 20 na parada gay, ou que ele é o cara mais macho do mundo, vou continuar tratando ele da mesma forma. Por tudo o que ele passou, pelo que ele passa, e pelo que ele passará.
As torcidas brasileiras são em tese, muito escrotas. A Independente é uma das que passa muito da linha. Conseguem se rebaixar a um nível de imbecilidade e cultural tremendo, em um passe de mágica. Nada de bom sai dela, tudo. Músicas sem graça e racistas (quem não se lembra da que tem preconceito contra favelados?), atitudes impensadas (rezo para que, pois se forem pensadas, aí chegarei a conclusão que eles tem um QI de formiga), preconceitos expostos e tudo que tem de ruim.
Eu não sei se ele é gay, mas tenho guardada e enquadrada um trecho de uma entrevista de Muricy Ramalho para a revista Trivela em Dezembro de 2006: “Os caras adoram ele aqui dentro. Ele é alegre pra cacete, está toda hora pronto para tudo, nunca reclama de nada, é sempre um dos primeiros a chegar. É determinado e responsável: faz faculdade à noite, quando tem concentração eu libero ele para ir na aula. Ele sabe muito bem o que quer, por isso saiu desta situação. E ele brigou com coisa feia. Eu sei com o que ele brigou, e foi fodido. A palavra é essa. Foi um puta homem. Por isso é que ele superou essa situação”
Concordo com tudo o que Muricy disse. Os imbecis da Independente não tem mente para isso, mas espero que vocês tenham.
FORÇA RICHARLYSON! INDEPENDENTE QUE EMENDE! FORÇA RICHARLYSON!”

Esta história foi avassaladora pra mim. Comecei a pensar na quantidade de gente com problemas muito mais sérios e graves que os meus e que, ainda assim, levavam a vida sem nenhum drama, cheios de esperança e projetos de futuro.
E o melhor da história: eu não entendendo nada de futebol e nem imagino qual seja a escalação do meu Galo. Imagina a do São Paulo...
Mas o efeito foi preciso. Qualquer dorzinha, qualquer tristezazinha ou malestarzinho, já enxergava a figura da Lisa, falando comigo:
- Pai, tá triste? Pensa no Richarlyson!
A grande lição desta história toda é que a gente aprende a ver a exata dimensão da nossa (des)importância. Aprendi direitinho a ver o que é prioridade e o que vale a pena de verdade.


[1] Pois é... Filho dos outros, é um nerd chato. Quando é minha Lisa, é um talento singular.
Quem? Parcial, eu?

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A bomba - 05


Pois é!
Na correria, eu viajei e Gêisa iria atrás das guias pros exames do plano de saúde, que Xande ficou de nos passar depois. Luiza e Tetê quebraram mais este galho. Os resultados ficaram prontos na sexta mesmo.
Gêisa pegou e, claro, antes de deixar na clínica do Xande, deu uma olhada e ficou sabendo, antes de todo mundo, do resultado. Estava lá, com todas as letras: t, u, m, o, r.
Na correria, só Gêisa tinha se dado conta que o dia da volta da viagem era o domingo, dia dos Pais. E nem que a bezerra (aquela lá do comecinho) tossisse, ela ia estragar a celebração do meu almoço.
Na segunda, ela me telefona:
- Tá lembrando do Xande?
Eu tava.
Passa um pouco, mensagem no celular:
- Tá lembrando do Xande?
Eu tava.
Depois de uns quatro telefonemas me lembrando do compromisso, ela fala:
- Quer que eu vá lá com você?
Claro que não precisava.
- Mas eu vou, concluiu ela, absoluta.

Cheguei pouco antes das 19:00. Xande esperou que ela chegasse pra nos atender juntos. E foi claro. Falou pra mim com todas as letras o que Gêisa já sabia: t, u, m, o, r.
Aí, me lembrando da dorzinha que eu tinha sentido antes da viagem, com cara mais de blasé e seguro de si que eu consegui na hora, lá fui eu antecipando ao Xande:
- Ainda bem que é no direito, que já não funcionava...
Xande me interrompeu, sério:
- É no esquerdo, bacana. E tem mais: um trombo na veia cava, bem na frente do rim.

Fiquei meio sem chão na hora mas a objetividade do Xande me ajudou a entender o que dizia no relatório.
A melhor solução era retirar o rim. E com o rim direito sem vascularização, isto significava hemodiálise. Mas isto só podia ser feito se a retirada do trombo desse certo.

Pra você que não é do ramo, trombo é um chouriço que se instalou onde o sangue devia correr livre, leve e solto. É meio que uma bomba relógio. Soltou um pedacinho do chouriço, é AVC ou trombose. Daí a prioridade dele na história.

Saco... Mas fazer o que? Vamos nós, acabar logo com esta história.