segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Série Turismo para gente especial 03

                                                  
Outro dia Marcelo Xavier foi no Meu Sítio comigo.  E eu, preocupado, com o que ele e sua cadeira de rodas iam fazer lá.
Pois a gente nunca curtiu tanto.  Olhava passarinho, olhava tucano, olhava plantinha, olhava tudo. 

Marcelo me fez lembrar de um texto do Fernando Pessoa com o qual eu sempre abria minhas aulas na cadeira de Eventos no curso de Turismo da PUC.   Viaja nele, comigo:
                  

Trecho 452

                         
O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado.  Este rapazito colecionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhia de transportes; tinha mapas – uns arrancado de periódicos, outros que pedia aqui e ali –; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios.  Ia às agências de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Austrália.
                   
Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido:  era também uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar.  Tenho pena de não saber o que é feito dele, ou, na verdade, suponho somente que deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem, estúpido, cumpridor dos seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer – morto, enfim, em sua mesma vida.  É até capaz de ter viajado com o corpo, ele que tão bem viajava com a alma.
           
Recordo-me de repente: ele sabia exactamente por que vias-férreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias-férreas se percorria a Inglaterra, e, através das pronúncias erradas dos nomes estranhos, havia a certeza aureolada de sua grandeza de alma.  Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez um dia, em velho, se lembre como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar em Bordéus.

E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele estivesse somente imitando alguém.  Ou ... sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empres a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino.

 Fernando Pessoa, in O livro do desassossego.

Acho que, pra viajar, é só me deixar na varanda, de frente pra vista.

7 comentários:

Laura Martins disse...

Diz o poeta Manoel de Barros, com sua sabedoria peculiar, que "poesia é voar fora da asa".

Beleza é poesia, e através da beleza a gente viaja sem asa, sem avião, sem nada. Viaja na alma.

Talvez um dia a gente chegue a pôr o pé no lugar para o qual há muito a gente já viajou com a alma. Aí, cara, a viagem tem pra nós um sentido que não tem pra ninguém mais. Porque tem gente que viaja só com o corpo; a alma não vai...

Beijos!

PC disse...

Uma vez dei um tapete persa pra minha mãe, Laurinha, falando com ela que era voador.
Lembro sempre da sua cadeira, voadora também, quando ela me conta as histórias dela.

Marcos Ferreira disse...

Viajar, não na imaginação, não a outro lugar, mas agora,aqui, no espaço todo abrangente, onde tudo está contido. "Um instante de total consciência é um instante de perfeita liberdade e consciência".

Marcos Ferreira disse...

Corrijo a sitação: " Um instante de total consciência é um instante de total liberdade e iluminação". Viajar.

PC disse...

É exatamente esta a paixão minha com este texto, Marcos.
Quando vejo suas fotos, fico assim, viajando...

Dudu Menicucci disse...

Esse trecho está também no post 82 - Viajandão.......
Inda falta "trepar" naquela montanha do "Meu Sítio" seu. Na volta da Expedição Ásia.....

PC disse...

Falha nossa.
Vou consertar, Dudu.