Mamãe costuma dizer que nós lá em casa não guardamos mágoa. A gente tem é uma memória muito boa.
Neste final de semana, que eu dormi com ela, me contou uma
história esplêndida, que eu conto sem citar nomes.[1]
É que mamãe recebeu uma visita de um irmão[2]
e ofereceu pra ele um arroz-doce que havia feito. Engolindo seco, ele agradeceu:
- Eu não como arroz-doce.
- Eu não como arroz-doce.
A cara de estranhamento da mamãe foi tão grande que nosso herói
resolveu abrir o coração.
Ele tinha seus 13 pra 14 anos quando estava com o Biá, seu
companheiro de traquinagens, na fazenda da Dona Adelina, mãe do Joaquim Leão. Os dois estavam na cozinha, de olho em um
arroz-doce que estava sendo preparado. Joaquim
chegou e Dona Adelina, puro zelo, ofereceu o pitéu ainda quente. Apressado, Joaquim declinou e partiu, sexta
feira, para um trabalho que tomaria o final de semana todo. Comeria quando voltasse, disse ele.
Cuidadosa, Dona Adelina guardou a iguaria longe das duas
crianças, para ser degustada na segunda com o filho. Biá e Fernando (ih, me escapou...) passaram
todo o final de semana salivando de vontade de comer o arroz-doce mas foram
mantidos a uma distância providencial.
Chega segunda feira, e, toda delicada, lá foi Dona Adelina
oferecer o arroz-doce pro filho que chegara inda agorinha. Quero não, falou Joaquim, sem dar muita trela.
- E o bobo do Biá
ainda aceitou, completou Fernando pra mamãe.
Fernando completou 70 anos este ano, perto do aniversário da
mamãe. Pois você acredita que ele ficou
algo em torno de 57 anos sem comer arroz-doce e sem ninguém saber desta história?
Fora que Dona Adelina já deve ter morrido há mais de 40 anos. E o Biá, há mais de cinco.
Quando mamãe me
contou o caso, telefonei pro Fernando, convidando pra comer um arroz-doce
comigo. Do outro lado da linha, ele estourou
de rir, consciente da bobagem de ter passado estes 50 e tantos anos longe da
felicidade de ver o gosto do doce tomando conta de sua boca.
Acho que meu câncer
pode ter vindo desta mania de guardar mágoa. O bom é que ele também tá indo embora quando eu vou descobrindo
que mágoa só machuca a gente mesmo.
Ainda bem que a
risada que o Fernando reservou pra si mesmo ajuda a me ensinar a ser mais
generoso e a tentar levar uma vida mais leve.
Espero que você também.